Humberto de campos (1886 - 1934), nasceu em Miritiba/MA. Atuou dentro do âmbito literário como jornalista, escritor e crítico, onde publicou crônicas, poemas e contos. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e também deputado federal pelo Maranhão. Sua obra não é vasta, haja vista ter falecido em 1934 no Rio de Janeiro, com apenas 48 anos de idade. Muitos dos seus escritos foram publicados postumamente.
Embora tenha publicado trabalhos em âmbitos diversos como crônicas, memórias e poemas, quero aqui chamar a atenção para a sua veia de contista, onde Campos escreveu bastante, inclusive deleitando-se em temas relacionados ao fantástico e ao horror, fugindo um pouco (mas não completamente) da forma tradicional que a literatura brasileira possui.
Seus contos são uma ótima leitura para aqueles que admiram a narrativa curta, Campos foi, sem dúvida, um erudito, e escrevia com profundidade, sempre considerando o impacto final no leitor em seus contos. Tendo uma história a contar, colocava-a no papel, mas sempre com técnica e concisamente, seus contos eram fechados como um todo, não havia espaço para devaneios e desvio de foco. Hoje já não é lembrado nos meios literários, porém para mim foi um dos grandes contistas brasileiros. Vale a pena dar uma olhada no trabalho deste que foi um belo escritor de nossa terra. Abaixo um de seus contos pelo qual tenho muito apreço:
O Monstro
Pelas
margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas,
caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois
espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na
areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e
marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.
Foi
isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos
descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas
águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas
frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto.
Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a
sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam,
fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa
miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se
sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a
umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço
à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas
moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios
de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos
fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que
pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa,
contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a
cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas
dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.
Rebanho
monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando,
colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui
e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam
olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia
privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga.
Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais
ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente
nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em
passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas
da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais
vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta,
nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas
todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas
no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se
inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais
veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
Súbito,
como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando
aproximar-se a companheira.
Para
que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho
da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A
Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo
o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
-
Para nós ambas, talvez...
- E
se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na
terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso
filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes,
das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu,
em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso
prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe
à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então,
no teu regaço... Queres?
A
Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram,
sombrias, modelando o seu filho.
- Eu
darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos
esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu
darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol
endurecera.
E
puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira
sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
-
Traze mais água! - pedia.
A Dor
enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava,
escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o
nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um
jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
-
Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a
Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas
depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o
novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas
particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os
seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés,
como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.
O seu
aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se
haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua
aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os
tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as
garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um
inimigo inesperado.
Repelido
pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado
pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes,
interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua
aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim
refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias
desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a
Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais
fracos.
Um
dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a
primazia na criação do abantesma.
-
Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui
eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E
como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma
tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu
dei a água! - tornou a Dor.
- Eu
dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo
os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as
tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do
Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que
espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama,
tomou-o nos ombros, e partiu...
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