Tema do blog



Embora minha principal intenção seja publicar material relativo à literatura e ao cinema fantásticos, o blog poderá apresentar também materiais de cunho diversos, alguns dos quais acho interessantes de uma forma geral, portanto não estranhem se encontrarem algo fora do tema principal.
Se ao menos uma pequena parte que seja do conteúdo do blog contribuir, de alguma forma, para a divulgação das múltiplas e ricas facetas da literatura fantástica, de horror ou sobrenatural, o blog terá cumprido seu principal propósito.


sexta-feira, 6 de março de 2015

Ambrose Bierce - A estrada ao luar

Abaixo um dos contos de Ambrose Bierce, neste ele explora com maestria um de seus personagens preferidos, o fantasma:

A estrada ao luar (The moonlit road)

I – Declaração de Joel Hetman, Jr.

Sou o mais infeliz dos homens.  Rico, respeitado, razoavelmente bem educado e gozo de boa saúde – tendo ainda muitas outras vantagens normalmente apreciadas por aqueles que as possuem e cobiçadas por aqueles que não as tem – Por vezes, penso que seria menos infeliz se não possuísse tais atributos, pois se assim fosse, creio eu, o contraste entre minha vida interior e exterior não me exigiria continuamente esta dolorosa atenção.
Sou filho único de Joel e Julia Hetman. Meu pai foi um próspero senhor do campo e minha mãe, uma mulher bela e talentosa, à qual meu pai, só agora consigo perceber, estava apaixonadamente atado com uma devoção zelosa e exigente. Nossa casa ficava a umas poucas milhas de Nashville, Tennessee, sendo uma residência enorme, construída de forma irregular e desprovida de qualquer ordem arquitetônica notável, próxima à estrada, em um parque com bastante árvores e vegetação.
No tempo sobre o qual escrevo, era eu da idade de dezenove anos, um estudante em Yale. Um dia recebi um telegrama de meu pai, o qual demandava tal urgência em relação ao seu inexplicável pedido, que parti de imediato para casa. Na estação de trem de Nashville um parente distante aguardava-me e prontamente me informou o motivo pelo qual fui chamado. Minha mãe fora barbaramente assassinada – o motivo e o responsável por tal atrocidade ninguém podia conjecturar, mas as circunstâncias foram essas: Meu pai fora a Nashville, de onde voltaria na tarde seguinte. Algo o impediu de realizar seu negócio, desta forma retornou na mesma noite, chegando pouco antes do amanhecer. Ao dar seu testemunho perante o legista ele explicou que não estava com a chave da porta de entrada, e, preocupado em não pertubar os empregados que já estariam dormindo, ele havia, com uma intenção não muito clara, dirigido-se até aos fundos da casa. Ao passar por um dos cantos ouviu um som, como o de uma porta sendo fechada com cuidado, e viu na escuridão, vagamente, a figura de um homem, a qual, subitamente, desapareceu entre as árvores que ficavam depois da clareira. Uma breve procura nas imediações, crendo que o invasor fosse alguém visitando secretamente algum dos empregados, provou-se infrutífera, meu pai então entrou pela porta aberta e subiu ao aposento de minha mãe. A porta estava aberta e, ao penetrar na escuridão, tropeçou e caiu sobre um pesado objeto que estava no chão. Devo poupar a mim mesmo os detalhes, era minha pobre mãe, morta, fora estrangulada por mãos humanas!
Nada havia sido levado da casa, os empregados não ouviram som algum, e, exceto por aquelas terríveis marcas de dedos no pescoço da morta – Bom Deus! Que eu possa esquecê-las! Vestígio algum do assassino foi jamais encontrado.
Desisti dos estudos e permaneci junto a meu pai, que, natural, estava imensamente abalado. Sempre fora calmo, taciturno, porém ele agora caíra em um estado de abatimento tão profundo que nada mais chamava sua atenção, ainda que - um passo, ou o súbito bater de uma porta – despertava nele um interesse vacilante, ou o que alguém poderia chamar, apreensão. A menor surpresa que fosse o deixava completamente em alerta e, por vezes, ficava pálido, para, em seguida, recair numa apatia melancólica mais profunda que a anterior. Eu suponho que ele estava, como costumamos chamar, “uma pilha de nervos”. Quanto a mim, era mais jovem do que sou agora – isso já diz muito. A juventude é um “Gileade”, um bálsamo para qualquer que seja a ferida. Ah, seu eu pudesse novamente pisar aquela terra encantada! Ao ignorar a dor, não tinha a menor condição de avaliar meu luto. Nem ao menos pude estimar, adequadamente, a força do  golpe que levara.
Uma noite, poucos meses após aquele terrível acontecimento, eu e meu pai retornávamos da cidade para casa. A lua cheia já a cerca de três horas dominava majestosamente o horizonte oriental. Todo o campo apresentava aquela solene quietude das noites de verão. Nossos passos e a incessante canção dos gafanhotos eram os únicos sons, em absoluto. Escuras sombras das árvores próximas lançavam-se através da estrada, a qual, dentro de seus limitados domínios, cintilava de um branco espectral.  Aproximamo-nos do portão de nossa morada, cuja fachada esta envolvida pela negritude das sombras e na qual, luz alguma brilhava, foi então que, meu pai, subitamente estancou, e ao agarrar meu braço, disse o seguinte, quase encoberto pela sua pesada respiração:
“Deus! Deus! o que é aquilo?”
“Não vejo nada.” Respondi.
“Mas veja – veja!” disse ele, apontando para a estrada, bem à nossa frente.
Falei: “Não há nada ali. Venha, pai, sigamos – você não está bem.”
Ele havia soltado meu braço e permanecia em pé, rígido e imóvel, no centro da iluminada estrada, fitando o vazio, como alguém que tivesse perdido os sentidos.  Seu rosto ao luar mostrava uma palidez e imobilidade angustiantes. Puxei gentilmente sua manga, mas ele desconsiderava minha existência, e, naquele exato momento, começou a afastar-se, passo após passo, sem desviar os olhos do que via, ou pensava que via, nem por um instante. Dei meia volta para seguí-lo, mas hesitei.  Não me recordo de ter sentido medo algum, a menos que um súbito calafrio tenha sido a manifestação de sua presença física. Foi como se um vento glacial tocasse meu rosto e envolvesse meu corpo dos pés à cabeça. Pude sentir o seu movimento pelos meus cabelos.
Naquele momento algo atraiu minha atenção, uma luz que subitamente brilhou em uma das janelas superiores da casa: Um dos empregados, despertado por uma misteriosa premonição de alguma presença maligna, e obedecendo a um impulso que jamais pôde identificar, acendera uma lâmpada. Quando retornei o olhar para onde estava meu pai não mais o vi, e em todos esses anos que se passaram, nem ao menos um sussurro de seu destino cruzou a fronteira das conjecturas do reino do desconhecido.

II – Declaração de Caspar Grattan

Hoje dizem que estou vivo, amanhã, aqui mesmo nesta sala, jazerá a forma de um corpo totalmente desprovida de sentido, que há muito, pertencera a mim. Se alguém levantar o pano da face daquela coisa desagradável, isto será feito, simplesmente, para satisfação de uma curiosidade mórbida. Alguém poderá, talvez, ir mais longe e perguntar, “Quem era?” Nestes escritos eu coloco a única resposta que posso dar -- Caspar Grattan. De fato, deverá ser o bastante. O nome tem atendido às minhas pequenas necessidades por mais que vinte anos de uma vida da qual não se conhece a duração. É correto, eu dei isto a mim mesmo, mas, na falta de outro, eu tinha o direito. Neste mundo deve-se possuir um nome; evita confusão, mesmo quando o nome não significa identidade. Alguns, todavia, são conhecidos por números, os quais também parecem ser distinções inadequadas.
Um dia, para ilustração, estava eu passando por uma das ruas da cidade, longe daqui, quando encontrei dois homens uniformizados, um deles, deteve-se um instante e olhando curiosamente para meu rosto, disse ao seu companheiro, “Aquele homem parece o 767”. Algo naquele número pareceu-me familiar e medonho. Movido por um impulso incontrolável, pulei para uma rua lateral e corri, até que caí, exausto, numa pista rural.
Nunca esqueci aquele número, e com frequência ele me vem à memória, acompanhado por sons inarticulados e obscenos, pelo ressoar de gargalhadas totalmente desprovidas de alegria, além do tinir de portas de ferro. Então eu digo que um nome, mesmo que auto-outorgado, é melhor que um número. Nos registros do campo do oleiro eu terei em breve ambos. Que riqueza!
Daquele que encontrar estes papéis eu devo pedir uma pequena consideração. Esta não é a história da minha vida. O conhecimento da escrita me foi negado. Mas sim apenas o registro de memórias entrecortadas e aparentemente desconexas. Algumas delas tão distintas e sucessivas quanto pérolas brilhantes em um fio, outras remotas e estranhas, como se fossem sonhos carmesim, com intervalos em branco e preto – fogos-fátuos brilhando imóveis e rubros em uma imensa desolação.
Sob a costa da eternidade, viro-me para um último vislumbre em direção à terra, através da qual segui meu curso até aqui. Ali contemplo vinte anos de pegadas razoavelmente nítidas, as impressões deixadas por pés sangrentos. Eles conduzem através de miséria e dor, pés tortuosos e inseguros, como aquele que está cambaleante, sobrecarregado pelo peso de seu fardo –
Distante, desprotegido, melancólico, lento.
Ah, a profecia do poeta a meu respeito – quão admirável, quão terrivelmente admirável!
Para trás, além do início desta “via dolorosa” – este épico de sofrimento com episódios de pecado – Nada vejo claramente; é como se isto saísse de uma névoa. Sei que dura apenas vinte anos, ainda que eu seja um velho.
Alguém pode não se lembrar do seu nascimento – ser-lhe-á contado. Comigo foi diferente; a vida veio a mim completa e dotou-me com todas as minhas faculdades e atribuições. De uma existência anterior não sei mais que nenhum de vocês, pois todos têm sugestões balbuciantes que podem ser memórias ou sonhos. Sei apenas que a primeira percepção que tive foi a de maturidade em corpo e mente – uma consciência aceita sem surpresa ou conjectura. Simplesmente encontrei-me a caminhar em uma floresta, vestido de trapos, com os pés em carne viva, beirando à exaustão e faminto. Vendo uma fazenda, aproximei-me e pedi comida, a qual me foi dada por alguém que perguntou meu nome. Não pude responder, embora soubesse que todos têm nome. Bastante embaraçado, retirei-me, e vindo a noite, deitei na floresta e adormeci.
No dia seguinte cheguei a uma grande cidade a qual não direi o nome. Nem darei relevância a incidentes adicionais desta vida que está para chegar ao fim—uma vida errante, a todo momento e lugares  assombrada por um superior sentimento de crime em punição do que é errado e de terror em punição ao crime. Vejamos se consigo reduzir isso a uma narrativa.
Parece que ouve um tempo no qual vivi próximo a uma grande cidade. Um fazendeiro próspero, casado com uma mulher a quem eu amava e de quem desconfiava. Nós tínhamos, assim me parece, uma criança, um jovem brilhante e promissor. Quase sempre uma figura vaga, nunca claramente desenhado e com frequência completamente fora de cogitação.
Em uma infeliz noite ocorreu-me testar a fidelidade de minha esposa de um modo comum e vulgar, familiar a qualquer um que é conhecedor da literatura factual e ficcional. Fui à cidade, dizendo à minha esposa que estaria ausente até a tarde seguinte. Mas retornei antes da aurora e fui até os fundos da casa, com a intenção de entrar por uma porta, a qual eu tinha adulterado a fechadura, de forma que parecesse que estivesse trancada, quando de fato não estava. Ao me aproximar, ouvi a porta abrir e fechar suavemente, e vi um homem deslizar para a escuridão. Com a morte em meu coração saltei atrás dele, mas já havia desaparecido, sem deixar traço algum que pudesse ajudar a identificá-lo. Às vezes, mesmo agora, não consigo convencer a mim mesmo de que era um ser humano.
Enlouquecido pelo ciúme e pela fúria, cego e bestial com todas as paixões elementares da masculinidade insultada, entrei na casa e subi as escadas até os aposentos de minha mulher. Estava fechada, mas eu também havia adulterado sua fechadura, entrei facilmente, e, embora a escuridão fosse profunda, logo me acerquei da cama. Tateando-na, percebi que, embora desarrumada, estava desocupada.
“Ela está lá embaixo,”, pensei ,“aterrorizada pela minha chegada escapou na escuridão do corredor.” Com a intenção de procurá-la virei-me para deixar o quarto, porém tomei a direção errada – a única certa! Senti meu pé golpeá-la, estava encolhida, num dos cantos do quarto. No segundo seguinte minhas mãos estavam na sua garganta, sufocando um esgar agudo, meu joelhos apoiados sobre seu corpo, que lutava; e ali nas trevas, sem uma palavra de acusação ou censura, estrangulei-a até a morte! Ali finda um sonho. Relatei tudo isto no tempo passado, mas o futuro seria o tempo mais adequado, pois, de tempos em tempos, esta sombria tragédia encena-se novamente em minha consciência – todas as vezes arquiteto o plano, sofro a confirmação, reparo a iniquidade. Então tudo torna-se vazio. E após a chuva acariciar novamente as sujas vidraças, ou a neve cair sobre minhas escassas vestimentas, as rodas matraqueiam as esquálidas ruas onde minha vida jáz em pobreza e mendiga ocupação. Se ali, algum dia, o sol brilhou, não tenho lembranças disso; se havia pássaros, estes não cantavam.
Existe outro sonho, outra visão noturna. Estou de pé, nas sombras de uma estrada, sob o luar. Estou certo de uma presença, a qual não posso determinar com precisão. Dominado pelas sombras de uma grande casa, eu vislumbro um brilho, como o de roupas claras; então a figura de uma mulher encara-me na estrada – minha esposa assassinada! A morte estampada em seu rosto; marcas horrendas sobre a garganta. Os olhos fixos nos meus com uma gravidade infinita, não era censura, ódio ou ameaça, mas também não era nada menos terrível que reconhecimento! Ante esta tenebrosa aparição, retiro-me aterrorizado – um terror que se repousa sobre mim enquanto agora escrevo. Não poderei mais dar forma às palavras por muito tempo. Veja! Eles...
Agora estou calmo, mas na verdade, não há mais a dizer: o incidente termina onde começou – na escuridão e na dúvida.
Sim, recuperei meu autocontrole: “Capitão de minha alma.” Porém descanso não há. Esta é uma nova etapa, e uma fase de expiação. Minha penitência, constante em grau, é mutável no tipo. Uma de suas variantes é a tranquilidade. Afinal, esta é apenas um sentença de vida. “O inferno em vida”—esta punição. Hoje minha pena expira.
A cada um e a todos, a paz que não foi minha.

III – Declaração da falecida Julia Hetman, através do médium Bayrolles

Havia me retirado cedo para meus aposentos e caí, quase que imediatamente, em um sono tranquilo, do qual acordei com aquele indefinível senso de perigo o qual fora, penso eu, uma experiência comum naquela vida anterior. De seu caráter inexpressivo, também estou inteiramente persuadida, embora ainda não a tinha banido. Meu marido, Joel Hetman, estava fora, os empregados, por sua vez, dormiam em outra parte da residência. Contudo, estas eram condições à quais estava familiarizada; elas nunca tinham me incomodado antes. Não obstante, um estranho terror tornou-se tão insuportável que, relutantemente decidi sentar-me e acender uma lâmpada de cabeceira. Ao contrário do que esperava isto não me deu alívio, antes a luz pareceu aumentar o temor do perigo, pois refleti que ela iria brilhar pelo vão da porta, revelando assim a minha presença para o que quer que fosse aquele ser perverso que espreitava pelo lado de fora. Vocês que ainda estão na carne, sujeitos aos horrores da imaginação, imaginem o monstruoso medo daquele que busca justamente na escuridão proteger-se das malignas existências das trevas. Trancar-se em um quarto fechado com um inimigo invisível – a estratégia do desespero!
Apagando a lâmpada, puxei o lençol sobre minha cabeça e assim permaneci, trêmula e silenciosa, incapaz de gritar, tão pouco lembrei-me de orar.  Neste deplorável estado devo ter ficado pelo que vocês chamam horas – para nós elas não existem, o tempo não existe.
Por fim veio – um suave e irregular ruído de passos na escada! Eram lentos, hesitantes, incertos, como os de alguém que não vê seu caminho; minha razão já desorientada, ainda mais terrificada fiquei, considerando a aproximação de alguma malevolência cega e negligente, para com a qual não haveria chance de súplica. Cheguei a pensar que tivesse deixado a lâmpada do corredor acesa e que, portanto, o tatear da criatura provava que era mesmo uma besta noturna. Uma análise tola e inconsistente, assim como o meu prévio pavor da luz, mas o que temos? O medo não possui cérebro; é um idiota. O testemunho sombrio e o conselho covarde que ele nos sussurra são desconexos. Bem sabemos disso, que aqueles que passam para o Domínio do Terror, o qual se esconde em um crepúsculo perpétuo entre as cenas de nossas vidas anteriores, invisível até a nós mesmos, e também isto, que nos escondemos, sem esperanças, em lugares solitários; com um desejo ardente por discursar com aqueles que nos foram amados, mesmo que estúpidos, e com tanto medo deles, quanto eles de nós. Algumas vezes essa impotência é removida, a lei suspensa: pela força imortal do amor ou do ódio, o encanto se quebra – somo vistos por aquele aos quais desejamos advertir, consolar, ou punir. De que forma nos veem não sabemos; apenas sabemos que aterrorizamos até mesmo aqueles que desejamos confortar profundamente, e de quem mais necessitamos receber ternura e simpatia.
Perdoem-me, rogo-lhes, esta inconsequente digressão, da qual, outrora, já foi uma mulher. Você que nos consulta deste modo inadequado – não entenderá. Você nos faz perguntas tolas a respeito de coisas desconhecidas e proibidas. Muito do que sabemos e podemos transmitir através de nossa língua não faria sentido na sua. Devemos nos comunicar através de uma inteligência limitada a uma pequena fração de nossa língua a qual vocês podem compreender. Pensam que somos de outro mundo. Não, não temos conhecimento de nenhum outro mundo além do de vocês, embora para nós não exista a luz do sol, o calor, os risos, o cantar dos pássaros, nem companhia alguma. O Deus! Quão terrível é ser um fantasma, encolhido e tremendo em um mundo alterado, uma presa para a apreensão e o desespero.
Não, não morri de medo: a Coisa virou-se e foi embora. Eu a ouvi descer as escadas, apressadamente, pensei, como se subitamente consciente de algum temor. Então levantei-me para chamar por ajuda. Mal havia minha trêmula mão alcançado a maçaneta da porta quando – Deus misericordioso! Ouvi que a besta retornava. Seus passos agora ao subir a escada eram rápidos, pesados e altos; faziam a casa tremer. Joguei-me em um dos cantos da parede e permaneci agachada. Tentei orar. Tentei clamar pelo nome de meu marido amado. Então ouvi a porta ser escancarada. Houve então um intervalo em que tudo se apagou, e quando voltei a mim senti um aperto estrangulador sobre minha garganta, meus braços batendo debilmente contra algo que me empurrava para trás, senti minha língua enfiando-se por entre meus dentes! E então passei a esta vida.
Não, não tenho conhecimento do que era aquilo. A soma do que conhecemos na morte é a medida de tudo que aconteceu até logo após aquele momento. Desta existência conhecemos muitas coisas, mas nenhuma luz cai sobre página alguma daquela vida. Está escrito na memória tudo aquilo que podemos ler. Aqui não há extensões da verdade com vistas para a confusa paisagem daquele duvidoso domínio. Ainda moramos no Vale das Sombras, espreitamos em lugares desolados, espiamos da mata e dos espinheiros a seus dementes e malignos habitantes. Como deveríamos nós ter conhecimento daquele passado que se desvanece.
O que estou preste a relatar aconteceu em uma noite. Sabemos quando é noite, pois é quando se recolhem para suas casas e nós podemos aventurar-nos de nossos esconderijos para nos mover, sem medo, em volta de nossos antigos lares, olhar pelas janelas, até mesmo entrar e contemplar suas faces quando estão dormindo. Eu já há muito tempo permanecia próxima à morada onde havia sido tão cruelmente transformada no que sou hoje, como costumamos fazer quando ali resta algum dos que amamos. Em vão eu buscara algum método de manifestação, algum modo de fazer minha contínua existência, meu grande amor e minha pena pungente compreendidos por meu marido e meu filho. Sempre que dormiam poderiam acordar, ou se em meu desespero ousasse aproximar-me deles enquanto acordados, poderiam projetar em minha direção aqueles terríveis olhos dos vivos, amedrontando-me através dos olhares, pelos quais eu tanto buscava, de acordo com minha proposta.
Naquela noite eu os procurara sem sucesso, temendo encontrá-los. Não estavam em lugar algum da casa nem sob o luar do amanhecer. Pois, embora o sol para nós tenha se perdido para sempre, a lua, preenchida em completo, ou delgada, permanecia. Algumas vezes brilhava à noite, outras de dia, mas sempre erguia-se e se punha, como naquela outra vida.
Deixei o gramado e desloquei-me para aquela luz branca e silenciosa ao longo da estrada, sem objetivo e entristecida. De repente ouvi a voz de meu pobre marido em exclamações atônitas, acompanhada pela de meu filho, de reafirmação e dissuasão. E alí, à sombra de um punhado de árvores estavam eles -- próximos, tão próximos! Seus rostos voltados para mim, os olhos do mais velho pousados sobre os meus. Ele me viu -- por fim, por fim, ele me viu! Consciente disto, meu terror dissipou-se como um sonho cruel.  O feitiço de morte havia sido quebrado: O Amor vencera a lei! Louca de exultação eu bradei – eu devo ter gritado, “Ele vê, ele vê: ele compreenderá!” Então, recompondo-me, avancei, sorridente e consciente de minha beleza, para me oferecer aos seus braços, para confortá-lo com carinhos, e com a mão de meu filho na minha, para proferir palavras que restaurariam os laços que foram quebrados entre os vivos e os mortos.
Ai de mim! Ai de mim! Seu rosto ficou branco de terror, seus olhos tornaram-se como aqueles de um animal caçado. Afastou-se de mim, quando avancei, e, por fim, virou e embrenhou-se na floresta – Para onde, não me é dado saber.
Ao meu pequeno garoto, deixado duplamente desolado, eu nunca fui capaz de comunicar senso algum da minha presença. Ele também, em breve, passará a esta vida invisível e se perderá de mim para sempre.


Tradução: Marco R. Oliveira



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