Tema do blog



Embora minha principal intenção seja publicar material relativo à literatura e ao cinema fantásticos, o blog poderá apresentar também materiais de cunho diversos, alguns dos quais acho interessantes de uma forma geral, portanto não estranhem se encontrarem algo fora do tema principal.
Se ao menos uma pequena parte que seja do conteúdo do blog contribuir, de alguma forma, para a divulgação das múltiplas e ricas facetas da literatura fantástica, de horror ou sobrenatural, o blog terá cumprido seu principal propósito.


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terça-feira, 18 de agosto de 2015

O Quarto 406 - Marco R. Oliveira

Abaixo segue outro conto de minha própria autoria.  Basicamente trata-se de uma história de fantasma, com passagens de terror e um pouco de suspense para prender a atenção do leitor. Tratei de ambientá-la dentro de um hospital para tentar trazer proximidade com a nossa realidade. Elaborei o conto para participar do Desafio do Terror do site Recanto das letras, que publica contos interessantíssimos de diversos escritores.  O conto fica como um tributo aos mestres das ghost stories, tais como M. R. James, Sheridan Le Fanu, Edith Wharton e muitos outros. 




O Quarto 406

Aconteceu à época de minha residência médica no Hospital Memorial C..., em Campinas. Aqueles foram bons tempos, nos quais alcancei muitas conquistas. A medicina proporcionou-me, como era esperado, satisfação plena de meus anseios profissionais. No entanto, grata foi a minha surpresa, ao perceber o quanto eu havia crescido também como pessoa, durante o aprendizado daquela bela profissão. É verdade que algumas lembranças estranhas, herança daqueles dias, continuam vivamente impressas em minha memória, e pensamentos obscuros ainda me atormentam quando tais recordações vêm à tona.
O Memorial C... era uma construção imponente, a entrada principal ficava recuada em relação à rua, cerca de quinze metros, ao longo de toda a sua fachada cinzenta. Toda essa lacuna, exceto a passagem central que conduzia à entrada e era ladeada por grades, era tomada por um jardim. Não muito alto, era composto por seis pavimentos, um dos quais era o térreo, contudo assentava-se sobre todo um quarteirão e sua planta, simples e quadrangular, aproveitava todos os espaços, sendo assim formidável a sua capacidade.
Eu já havia estagiado por muitas das especialidades que o Memorial atendia, e agora me deleitava em uma que já ocupava lugar de honra entre as minhas preferidas: A cirurgia. Assombrava-me a perícia que os médicos-cirurgiões demonstravam durante as operações, a precisão no corte, a incisão perfeita, os instrumentos afiadíssimos, a irrigação sanguínea do local afetado, e principalmente, o momento em que o paciente recobrava a consciência. É fato, logicamente, que nem todas terminavam de forma feliz, aliás, algumas já estavam fadadas ao fracasso desde o seu princípio.
Ainda me recordo de uma delas que me impressionou profundamente. Era um caso de aborto, porém como o estágio da gravidez já era avançado e o feto, após sua morte, não fora eliminado espontaneamente, deveria ser retirado.  Os instrumentos usados na ocasião pareceram-me brutos demais, eram enormes, as tesouras, as pinças. Os médicos retiravam os restos da criança aos pedaços, não saíra inteiro, era uma cena dantesca. Pensei em mim no lugar daquela mulher, não pude suportar e saí da sala. Durante vários dias permaneci angustiada, não imaginava que o milagre da vida poderia ser tornar algo tão pavoroso. Aquilo me abalou por muito tempo.
O quarto 406 era uma das salas onde os pacientes eram acomodados antes de irem para o centro cirúrgico e depois de voltarem dele. Ali o paciente se restabelecia durante o pós-operatório. Eu me familiarizara com aquela sala e sempre que estava vazia aproveitava para fazer minhas anotações ali. Muitas vezes depois de uma das “sessões”, como eu costumava chamar os trabalhos cirúrgicos, eu subia até o quarto para registrar detalhes específicos que houvessem ocorrido, pois algumas cirurgias eram muito peculiares e complexas, principalmente as relacionadas aos nervos.
Depois de um tempo a frequentar aquele quarto, algo começou a me incomodar. Era comum, quando eu estava ali sentada, sozinha, sentir um corrente de ar, como se fosse um vento frio a circular pelo ambiente, quase imperceptível. Essa situação, dada a frequência em que ocorria, desagradava-me bastante, de maneira que todas as vezes que ia usar a sala, antes fechava todas as janelas. O que parecia de nada adiantar.
Certa tarde um dos funcionários da manutenção veio ao quarto, estando eu presente, era um senhor, magríssimo, já avançado na idade, ao perceber-me disse:
- Desculpe doutora, não sabia que o quarto estava em uso...
- Não se preocupe, já estou de saída.
- Vim ver o que acontece com o ar condicionado, disseram que não está funcionando...
- Não costumo usá-lo, nem sabia que estava defeituoso. Aliás, nesta sala parece haver sempre um corrente de ar, sabe se existe alguma outra abertura que não seja as das janelas, senhor?
- Nunca ouvi falar, os quartos dessa ala são os mais bem vedados do hospital, também nunca senti vento nenhum aqui, doutora.
- Estranho, respondi, tenho certeza de que se dessem uma olhada melhor achariam alguma abertura escondida por onde o ar se infiltra.
- Pode deixar doutora, vou aproveitar e verificar todas as janelas.
- Obrigado e bom trabalho então!
- Até mais ver, doutora.
Algum tempo depois comentei sobre o quarto 406 com uma das enfermeiras mais velhas do hospital. Chamava-se Magda, era alta e corpulenta, e tinha o cabelo preto cortado bem curto. Seu rosto era redondo, macilento e dotado de um olhar perverso, muitas vezes observei que maltratava os pacientes idosos, movimentando-os bruscamente e também durante a medicação, principalmente nas aplicações intravenosas. Admirava-me que a administração do hospital ainda não a houvesse despedido, pois eram constantes as reclamações a seu respeito. Ao ouvir minhas impressões sobre o quarto 406 primeiro soltou um risinho misterioso, depois se aproximou de tal forma que senti seu hálito quente bafejar em meu rosto (era um cheiro horrível) e disse: “Vou lhe contar uma história, Laura, que ouvi a respeito daquele quarto, da qual tomei conhecimento através de uma das enfermeiras que presenciou o episódio ”. Fomos tomar um café e foi então que me contou o seguinte:
Há cerca de quatro anos atrás, trabalhava aqui conosco um médico, chamava-se Dr. Carlos e era um cirurgião geral ainda sem muita experiência. Muito orgulhoso de si mesmo, achava-se um profundo conhecedor dos mistérios da medicina, como é comportamento costumeiro dessa classe de açougueiros que ultimamente jorram em nosso país aos borbotões (assim dizendo encarou-me com um olhar severo, a megera). Dificilmente discutia sobre seus pacientes com os companheiros de trabalho e distribuía diagnósticos aos quatro ventos, muitos dos quais, se considerados por algum profissional de gabarito, sem dúvida seriam contestados.
Naquele tempo, em uma noite chuvosa, na qual o doutor Carlos estava de plantão, deu entrada no hospital uma paciente, que se encontrava em estado lastimável. Era uma moça nova, portadora de uma fratura exposta localizada na perna direita, das grandes. Duas enfermeiras entraram no quarto 406 empurrando a maca, a mulher urrava de dor, a coisa estava feia para ela. Carlos, após um exame rápido, dado o estrago na perna da mulher, concluiu que a paciente deveria ser preparada para a cirurgia imediatamente. As enfermeiras então imobilizaram o membro fraturado e, deixando a paciente aos seus cuidados, saíram da sala. O Doutor preparou uma seringa com uma dose de T..., um poderoso analgésico, que por vezes chegava a causar inconsciência. Aproximou-se da mulher com o medicamento em mãos ao que ela, gemendo de dor, disse:
- O que vai injetar em mim Doutor?
- Trata-se de um medicamento para aliviar sua dor, não se preocupe.
- Tudo bem doutor, mas o que é? Gostaria de saber...
- Fique calma, confie em mim, logo vai se sentir melhor.
E assim dizendo aplicou a medicação no braço da paciente, que estava imobilizada, imediatamente ela pareceu adormecer. O doutor, então, dirigiu-se ao centro cirúrgico para reservar uma das salas e dar início aos procedimentos pré-operatórios.
Ao voltar ao quarto, pouco depois, estranhou que a paciente ainda estivesse inconsciente e aproximou-se dela. Seu rosto estava muito pálido e as pupilas dilatadas, percebeu que algo ali estava errado. Tentou captar a respiração através de um espelho aplicado à boca, nada! Constatou também que não havia pulso. Um pensamento o fez estremecer. Agarrou o prontuário que estava preso à maca e leu as poucas linhas que este continha. Inútil dizer mais, ali estavam listados três medicamentos aos quais a paciente relatara já haver sofrido reações adversas em outras ocasiões. Todos os três tinham como componente base o mesmo do medicamento T... que o doutor lhe aplicara, a única diferença era quem em T... sua proporção era muito maior. Imediatamente lançou mão do telefone e alertou às enfermeiras de que tinham um quadro de parada cardiorrespiratória.
Em instantes o quarto estava povoado de jalecos brancos movimentando-se em profusão em torno da maca. Tentaram reanimá-la de todas as formas, ligaram-na a um sistema de respiração artificial e passaram a aplicar-lhe massagem cardíaca por alguns minutos, até perceberem que, não obtendo resposta, o entorno de seus olhos já começava a se arroxear. O doutor então mandou que preparassem o desfibrilador. Pediu espaço. Aplicou a primeira descarga. Nada. Aguardou a tensão estabilizar-se.  Separou bem as placas. Nova descarga, sem resposta. O monitor cardíaco há muito era apenas uma linha contínua, durante as duas descargas ondulou em um espectro sem padrão ou frequência, para, em seguida, voltar a emitir o seu bip imperturbável, constante, agourento. Uma terceira descarga, nenhuma chance, desligaram todos os equipamentos, exceto o monitor, os ruídos cessaram, o grupo se desfez, todos saíram, permaneceram apenas três naquela lúgubre sala, o doutor, a paciente e a morte.
- E então? Perguntei eu, ao perceber que Magda parecia ter encerrado sua narrativa.
- Acabou. Respondeu gravemente.
- E o doutor Carlos ficou impune? Não descobriram o que aconteceu? Ajuntei indignada.
- Na verdade, Laura, de certa forma, ele foi sim punido, mas de uma maneira que foge ao convencional. Na época, nenhuma pena lhe foi imputada, afirmaram que a parada cardiorrespiratória foi causada pela perda de sangue em excesso, e o falecimento fora inevitável. Assim, o diagnóstico oficial favoreceu o doutor, que escapou ileso, ou quase, por assim dizer, pois pouco tempo depois foi internado em um manicômio, onde permanece até hoje, e de onde acredito, nunca mais sairá.
- Por que diz isso? O que aconteceu? Perguntei.
- Porque, minha cara, a história tem um adendo sinistro, o qual o próprio doutor deixou escapar pouco tempo antes de enlouquecer, ele certamente já não deveria estar em seu perfeito juízo quando declarou essa sentença, mas ouça e julgue por si mesma:
Quando todos saíram do quarto 406, o doutor sentou-se numa das cadeiras e permaneceu absorto em seus pensamentos. Talvez estivesse a considerar o peso do fardo que seu erro jogara-lhe aos ombros, ou talvez, cego de espírito pela sua soberba, não considerasse, quem sabe?  Fato é que estando desta forma, um ruído chamou sua atenção. Olhou para a maca e viu que um dos braços da paciente havia resvalado e pendia suspenso ao lado do corpo. Inconscientemente se levantou para arrumar o cadáver. Quando estava prestes a tocar o braço da morta, esta foi mais rápida e o agarrou com força assustadora e ergueu lentamente o quadril, encarando o doutor. Seu rosto, dissera ele, era o próprio retrato da morte, em lugar dos olhos orbitavam dois espaços negros. Da sua boca saíram estas palavras:
- Vai pagar pelo que me fez, maldito! Cedo ou tarde! Assim jura minha alma!
E então soltou o doutor, que tombou para trás, e caiu inconsciente. Foi despertado horas depois, quando chegaram os funcionários responsáveis pela remoção da falecida. Um fato curioso, embora absurdo, em minha opinião, e que é conhecido apenas de amigos íntimos do doutor (amigos estes que, na minha opinião, além de íntimos, possuíam a imaginação deveras fértil), diz respeito a uma marca que ele portava. Em seu braço esquerdo, dizem, como se tivesse sido gravada a fogo, viam-se cinco dedos longos e finos em forma de uma mão. Eu, embora seja contemporânea dele, nunca vi esse marca e, obviamente, não creio que ele realmente a tenha. E agora, querida, você tem a história completa. E virou-me as costas, deixando-me com mil perguntas a fazer.
Confesso que não sou supersticiosa, nem tampouco me quedo a crer nesta visão convencional a respeito dos fantasmas, a qual sugere que essas criaturas possam vagar sobre a terra, impulsionadas por quaisquer que sejam seus insólitos propósitos. No entanto, esse meu sentimento não impediu que crescesse cada vez mais em mim uma aversão ao quarto 406, passei a usá-lo com menos frequência e, preferencialmente, enquanto a luz do dia ainda se filtrava pelas suas janelas. É que a noite já não me permitia um estado de concentração favorável para minhas anotações, sempre que ali permanecia após o crepúsculo, minha caligrafia tornava-se deplorável. Adquiri também um costume, provavelmente influenciada pelo que soube aconteceu naquela sala, de, após apagar a luz, antes de sair, virar-me e contemplar o seu interior. Estranhamente, a escuridão nunca era completa, parecia que habitava ali uma penumbra constante, uma aura sinistra. Com o tempo, percebi que este não era um hábito saudável e o abandonei.
Certo dia, estava eu a usar a sala e, compenetrada em meus afazeres, quando dei por mim, percebi que já anoitecera. A temperatura caíra bruscamente e eu não trazia blusa comigo, censurei-me por isso. Guardei meu caderno, livros e demais pertences e estava prestes a levantar, quando ouvi barulho de algo caindo no banheiro do quarto. Levantei e para lá me dirigi, ao abrir a porta uma lufada de ar frio atravessou-me os ossos em cheio, estremeci. Alguns itens higiênicos que estavam sobre a pia haviam caído e isso causara o barulho. Abaixe-me e passei a recolhê-los. Foi quando senti um sopro leve e gelado em minha nuca, todos os meus pequeninos pelos ali se eriçaram e o banheiro pareceu transformar-se, subitamente, num frigorífico.
Eu podia observar as baforadas de minha respiração suspensas no ar diante de mim. Virei-me. Deus! Não deveria tê-lo feito! Antes tivesse perdido o dom da visão! A aparição diante mim era espectral! O esboço de uma estrutura humana feminina, completamente translúcida! Era magríssima e em toda a sua extensão corria uma espécie de emaranhado de veias e artérias azuladas. Minha visão então repousou sobre o seu braço direito, o qual ela estendia em minha direção a ponto de quase me tocar. Ali aquela profusão de vasos sanguíneos era ainda mais intensa, centenas deles, se possível fosse contá-los. Foi então que vi algo que fez minha respiração estancar. Ali em seu braço, pendurada, balançando, suspensa apenas pela agulha, a horrenda forma de uma seringa ainda úmida de sangue! Com um grito abandonei aquele quarto e corri como nunca pelos corredores daquele maldito hospital, parando apenas quando me vi, já na rua, sem fôlego.
 Durante todo o restante de minha residência, que felizmente já se aproximava do fim, não mais entrei naquele quarto. Passado o terror do acontecido, ficou em mim um sentimento profundo de tristeza e amargor. Por vezes a melancolia tomava conta dos meus pensamentos e eu ficava, prostrada, a imaginar o martírio daquelas almas para além da morte, que prosseguiam acorrentadas a este mundo, sem descanso, atormentadas por não aceitarem o cruel e imerecido destino que tiveram em vida. Por fim, meus dias no Memorial C... findaram, e parti finalmente, pronta para exercer meu ofício.

***

                Alguns anos depois, eu já clinicava em meu consultório particular, quando uma amiga minha de Campinas, a visitar-me, trouxe-me uma triste notícia. O Hospital memorial C... fora desativado, o lugar agora tornara-se um prédio de escritórios. Não mudara muito externamente, segundo me disse, mas por dentro as salas foram completamente destruídas para dar lugar àquele conhecido inferno de baias e divisórias que delimitam áreas minúsculas, onde imperam uma mesa e um computador. Um sentimento de nostalgia depositou-se sobre mim, pois aquele fora, sem sombra de dúvidas, um excelente hospital.
Curiosamente, àquela mesma época, tive notícias do falecimento do doutor Carlos, em sua cela, no mesmo hospital psiquiátrico de outrora, onde continuava internado. Uns disseram que morrera asfixiado, outros que fora vítima de uma parada cardíaca. Eu de minha parte, prefiro não especular qual tenha sido a causa da sua morte. Quando o encontraram, da sua boca escorria um filete de sangue que encharcava a camisa de força, e alguns de seus dentes, talvez devido à medicação que tomava, ou por tê-los se submetido a algum esforço excessivo, estavam amolecidos. Dadas às circunstâncias do óbito, a perícia foi ao local, investigar, nada encontraram de notável, exceto uma seringa vazia, encontrada sob o cadáver do malfadado doutor. 

Marco Roberto de Oliveira

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Os ratos - Marco R. Oliveira


Abaixo segue um conto de minha própria autoria. O conto tem bastante suspense e terror, para aqueles que gostam, talvez apreciem, acho que vale a pena perder um tempinho, rssss.
Este meu conto ficou em terceiro lugar no desafio DTRL21 (Desafio do Terror do Recanto das Letras), que trata-se de um desafio do site Recanto das Letras, onde diversos contos são postados e concorrem para serem votados. Abaixo o link do desafio: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/5212252





Os ratos

Os ratos tornavam-se maiores a cada dia pensou Roger, as proporções de muitos deles eram assustadoras; quantos anos teriam os mais velhos? Não mais que três ou quatro, é certo, pois não vivem tanto estes animais imundos. Há cerca de dois anos alugara a casa, e os ratos já eram inquilinos daquela pocilga, não seria absurdo que alguns houvessem prolongado sua existência até aquele momento. O ambiente era propício à proliferação de pragas, a casa era antiga, ou para fazer justiça, velha, as paredes possuíam rachaduras assustadoras, e, em diversos pontos eram ocas, percebera pelo som que produziam em resposta ao toque de suas mãos. Apenas dois pequenos cômodos e um banheiro, estes constituíam quarto e cozinha, o que atendia Roger sem proporcionar grandes privações. No entanto as paredes não eram o único problema, o piso encontrava-se destruído, em muitos locais a cerâmica soltara, expondo o contrapiso, e não era incomum escutar estranhos ruídos às vezes, acima ou abaixo, quase sempre indicando que algum roedor estava a passear pelo sótão, ou pelos encanamentos do esgoto.
Mas todas aquelas condições Roger propusera-se a aceitar (muito embora só viesse a tomar conhecimento de muitas delas depois de estar instalado no local), pois seu orçamento era baixo, e o valor do aluguel parecera muito atraente, ademais suas exigências eram simples: apenas um aposento para descanso e onde pudesse estudar nas horas vagas sem ser perturbado. Mudara-se para aquele casebre unicamente pelo seu posicionamento em relação à faculdade, na qual cursava o terceiro ano do bacharelado em Física, e tinha por certo que, se tudo corresse bem, ao findar do quarto dali partiria o mais rápido possível, de modo a livrar-se daquele ambiente desagradável e imundo e escapar àqueles tétricos ruídos noturnos que o atormentavam. No entanto agora os ratos cresciam perigosamente, e isso o preocupou...
Em uma noite chuvosa, depois de duas horas debruçado sobre um desgastado volume de “Fundamentos de Física – Halliday & Resnick”, analisando terríveis conceitos de eletromagnetismo, ao perceber que as componentes das fórmulas começavam a dançar em suspensão a sua frente, decidiu ceder à atração fatal que sua cama já há algum tempo exercia sobre ele. O relógio da parede, um modelo antiquíssimo, moldado em madeira mogno, e com o mostrador interno já obscurecido e parcialmente corroído pelo tempo, mostrava através de algarismos romanos uma hora e quinze da madrugada, Roger então se deitou e adormeceu.  A noite avançou silenciosa até que, em certo momento, sem reconhecer de imediato por qual motivo, despertou, e ainda sonolento, acendeu o abajur e olhou para o relógio, eram duas e quarenta e cinco. “Por todos os diabos”, pensou, “Dormi pouco mais de uma hora, se meu sono continuar assim ao amanhecer estarei péssimo”. Foi quando percebeu o porquê de seu despertar, estranhos ruídos mostravam que havia movimento noturno no sótão. Ouvia-se o arranhar tão característico das patas daqueles malignos roedores, velhos conhecidos seus. “Malditos”, ruminou Roger, “Descansam durante o dia e reservam a noite para seus propósitos imundos”. E com este pensamento virou-se na cama e intentou pegar no sono novamente. Mas estava escrito que, naquela noite, o descanso não lhe seria facilmente concedido, pois o sabá diabólico dos ratos no sótão pareceu aumentar, tornando o ruído de tal forma incômodo que resolveu investigar. Foi até o quintal, apanhou a escada dobrável e colocou-a no canto de seu quarto, aquele que ficava à frente e à esquerda de sua cama. Acima daquele local, no teto, havia um pequeno acesso ao sótão, composto por uma espécie de alçapão de madeira preso por duas dobradiças de ferro. Empurrou o alçapão e este ao recuar despejou uma camada de pó pelas laterais, parte da qual caiu sobre seu corpo. Amaldiçoou mais uma vez tanto aquela praga infernal de ratos, quanto à megera da proprietária que não oferecera um mínimo de cuidado que fosse a casa, deixando que chegasse a este lastimável estado de desleixo. Não era de admirar-se que a locara tão barato. Projetou-se pelo pequeno espaço quadrado na laje e fitou a escuridão, não sem notar, com certa apreensão, que os ruídos haviam cessado completamente. Aos poucos seus olhos foram se acostumando às trevas, percebeu que o conteúdo do sótão resumia-se a alguns móveis velhos, uma máquina de costura, um colchão completamente esfarrapado e caixas de papelão. De onde estava revirou alguns objetos que estavam ao seu alcance e, satisfeito por não notar movimento ou ruído algum em resposta, desceu ao piso. Após remover a escada para fora da casa, resolveu deitar-se novamente, não antes, contudo, de ponderar sobre a inteligência maligna que estranhamente aqueles animais pareciam demonstrar em certas ocasiões.
Adormeceu novamente, caindo em um sono profundo. Desta vez, quando acordou, um tremor percorreu seu corpo, se devido a uma típica corrente de ar frio, ou por força de alguma causa menos palpável não se sabe, o fato é que, mesmo o quarto estando na mais completa e silenciosa escuridão, algo o desconfortava. Sentou-se na cama e, ao tocar os pés no chão, permaneceu imóvel e em silêncio absoluto, tentando ouvir aquilo que imaginava deveria ser o motivo do seu despertar. Nada escutou a princípio, porém, em seu estado de concentração, notou, à sua frente, sob sua escrivaninha, dois olhos flamejantes, imóveis, que espreitavam através da escuridão em sua direção. Estremeceu, pois à altura em que estavam aqueles olhos, não podiam ser o que ele temia, impossível, só se fosse um dos enormes e estivesse apoiado sobre suas patas traseiras. Dois pequeninos glóbulos de um vermelho demoníaco, não eram pensou, não podiam ser de um daqueles horrendos ratos! Foi então que o lampejo de uma ideia passou em sua mente, “seria um felino?”, estaria justificado o seu tamanho, mas não, nenhum gato com aquelas proporções seria dotado de olhos tão minúsculos... “Preciso afastar esse animal, já não basta o sótão agora aqui, em meu próprio quarto”. Levantou-se então vagarosamente, a figura à sua frente permaneceu, para sua surpresa, imóvel, deu então um passo à frente com firmeza em direção àqueles olhos, foi então que, horror dos horrores! A besta ergueu-se pavorosamente em suas patas traseiras e soltou um guincho arrepiante deixando seus dentes afiados à mostra em sinal de ameaça, Roger estancou, sentiu uma gota de suor escorrer por sua fronte, e no instante seguinte, num salto provocado pelo terror lançou-se ao interruptor e acendeu as luzes do quarto. Imediatamente voltou seu olhar para a escrivaninha, já não mais lá estava aquilo, tudo que conseguiu ver foi uma enorme massa cinzenta deslocando-se para a cozinha, correu para lá, mas nada conseguindo encontrar presumiu que o animal havia fugido.
Resolveu tomar um banho para aliviar seu corpo da tensão que passara, pois sentia os músculos retesados e percebeu que estava banhado em suor. Apenas mais dois fatos são dignos de nota nesta noite, o primeiro deles foi que ao voltar para cama após o banho, notou, ao olhar para o acesso ao sótão no teto, que havia esquecido o alçapão aberto, rapidamente o fechou e irritou-se consigo mesmo por esse deslize; o segundo, mais precisamente uma idéia, na qual Roger concluiu que ao fim do mês comunicaria à senhoria que não mais seria seu inquilino.
Cabe aqui considerarmos que, enquanto a alguns dos fracos e débeis seres que povoam esta terra, mesmo em sua inexorável insignificância, concede-se levar a cabo, parcialmente ou em sua totalidade, seus intentos, sejam estes para o bem ou para o mal; a outros menos afortunados esta nobre permissão é, muitas vezes sem justificativa alguma, negada. Roger, embora ainda não suspeitasse de tal, teria de lutar com todas as suas forças para firmar-se no primeiro grupo e fazer a sua sorte, ou melhor, destino.
E foi assim que na noite de 30 de Abril de 19.. foi mais uma vez despertado de seu sono por ruídos que já lhe eram de todo familiares. Levantou-se e foi à cozinha para um copo d’água, ao retornar a sua cama, em silêncio, notou algo estranho naquela medonha e sinistra sinfonia: um ruído distinto, como se fosse o som de algo sendo revirado, algo sendo esmiuçado... Resolveu investigar. Munido de escada e lanterna ergueu o alçapão de acesso ao sótão. Um odor nauseabundo e fétido invadiu suas narinas de modo que precisou apoiar-se na laje por um instante! “Por Deus, há algo podre aqui!”, pensou Roger “O que esses malditos vermes andaram aprontando?”. Perpetrou o negrume do sótão com sua lanterna e, ao apontá-la para um dos cantos percebeu uma movimentação súbita de um sem número daquela praga, talvez dez ou mais, que estavam amontoados naquele recanto e foram afugentados pela luz. Aproximou-se devagar do local onde os ratos estavam, certo de que dezenas de olhos peçonhentos acompanhavam-no. Confirmou suas suspeitas, dali provinha aquele odor repulsivo que sentira, o cadáver putrefato e parcialmente carcomido de um gatuno era sua fonte, porém o que o assustou foi o tamanho do bichano, era enorme! Passada a surpresa ponderou sobre como os ratos teriam trazido o cadáver até o sótão, só poderiam ter vindo por cima, pois era muito pesado, de forma que passou a inspecionar o telhado; não demorou muito encontrou um ponto em que duas das telhas de barro romanas haviam se soltado! Não notou nada de anormal com as telhas, estavam intactas, recolocou-as em seu devido lugar. Não deviam estar soltas há muito tempo, pensou, pois se assim o fosse já teria notado alguma infiltração de água pelo teto. Resolveu abandonar aquele antro odioso, porém precisava remover o cadáver do bicho, ali no sótão serviria apenas para alimentar ratos e vermes, o que não era de seu interesse, e logo também aquele cheiro pestilento logo se espalharia pela casa. Lançou mão de uma das caixas de papelão que estava próxima e com as mãos envoltas em alguns trapos colocou o bichano dentro, ou o que restava dele, depois do banquete daquelas ratazanas. Começou a arrastar a caixa atrás de si, ouviu ruídos, parou... silêncio... deu mais um passo, som de patas apressadas, estancou... “Não desejam abandonar a presa os nossos colegas” meditou, “É um banquete e tanto certo?”, “Eu também não desistiria tão facilmente de todo esse alimento, meus caros”, falou e riu nervosamente consigo mesmo por dentro. O suor escorria aos borbotões e parecia pesar e colar sua roupa ao corpo “como era abafado o sótão!” e com estes pensamentos não resistiu à tentação e virou sua cabeça em direção à escuridão atrás de si, sem direcionar a lanterna, e assim ficou, alguns instantes, a contemplar aquele negror, intenso e profundo, que aos poucos foi sendo povoado por pequenos pontos carmesim, milhares deles, distantes, estáticos, porém o sabia Roger, opressores e prontos a atacar a qualquer momento, para reaver sua presa! Disparou em direção à abertura para o pavimento inferior, porém quando estava à beira algo roçou por entre suas pernas e o fez tropeçar, algo sinistro, ágil e coberto de pelos, Deus! Algo hediondo! Sabia de que se tratava, e esse era dos grandes, pensou, um calafrio percorreu sua espinha, mergulhou pela fatídica abertura.


* * *

Despertou com a visão turva e com a impressão de que sua cabeça iria explodir, porém, ao aspirar novamente o cheiro terrível dos restos carcomidos do felino, de imediato recobrou consciência de sua situação. Notou que a carcaça do bichano havia caído ao seu lado e estava ainda parcialmente dentro da caixa usada para seu transporte. Os ratos se banqueteavam, monstruosidades famintas, arrancavam nacos do pouco que ainda restava do infeliz animal, pareciam não ter pressa, absortos a tudo em sua volta, perfeitos habitantes da escuridão.
E foi então que percebeu, no piso junto à parede, empoleirado, sinistro, com o olhar fixo sobre ele, aquele era descomunal! Sem dúvida a maior de todas aquelas feras, certamente o mesmo que o desafiara naquela noite chuvosa e arreganhara aqueles dentes horríveis. Mas desta feita a ratazana permaneceu imóvel, parecia discernir a angústia no rosto de Roger, sua situação inferiorizada e miserável, não se alimentava, como os outros, da mísera carcaça do gato, parecia aguardar por algo que se equiparasse ao seu apetite... algo mais, como podemos dizer... substancial!
Roger tentou levantar-se, uma dor lancinante atravessou sua perna, levou a mão até o local, percebeu um osso exposto, começara a contabilizar as consequências de sua queda. Outra dor localizada no abdômen incomodava-o, percebeu que também havia sangramento ali, certamente algum objeto pontiagudo perfurara a região, talvez a lanterna ou algum dos pertences de sua mobília, sentia a boca seca, uma sede mortal torturava-o. Pensou em como as coisas chegaram àquele ponto, haveria ele subestimado o problema? Começou a se arrastar em direção à cozinha, “preciso sair daqui imediatamente”, pensou, “Este animais são tão ou mais diabólicos que imaginei”. Ganhou alguns centímetros, os ratos silenciaram, em seguida algo perfurou seu pé, soltou um grito, mas nada pode fazer, era o pé pertencente à perna fraturada. Voltou a se arrastar novamente, sentia-se em uma selva com o inimigo a caça-lo. Algo o abocanhou, “Por Deus possuía a foça de uma torquesa”, mas dessa vez conseguiu revidar com um golpe de pernas.  Continuou a arrastar-se, um vulto deslizou ao seu lado, tremeu, vacilou, gemeu. Sentiu um peso sobre os ombros, a dor na perna era insuportável, sentiu suas forças fraquejarem, a visão parecia tornar-se turva, já percorrera alguns metros, era certo, precisava continuar, estava nos limites da exaustão, num esforço sobre-humano avistou a porta da cozinha que dava para a rua, estendeu os braços e a tocou...


* * *

Era uma manhã gélida na Rua Akron, por volta das sete horas, não havia vento forte, apenas uma corrente de ar úmida acariciava o rosto dos transeuntes. Pouco, ou quase nenhum movimento era comumente percebido naquele horário. Reinava um silêncio espectral ocasionado pela forte neblina que o clima trazia consigo. E foi nestas condições que os passos abafados da Sra. Lamberg quebraram aquele agradável silêncio, Ah! A beleza do silêncio! A sua sabedoria! No seu profundo parece falar consigo! Mas deixemo-lo, não devemos perturbá-lo. Voltemos ao propósito daquela senhora, que era dos mais inexpugnáveis, receber o aluguel. Ela era sempre pontual, ao dia primeiro de cada mês e aquele rapaz era bom pagador.
Caminhou até a porta da frente e fez soar a campainha, ouviu alguns ruídos indistintos, aguardou. Novamente tocou a campainha, sem resposta. Um comportamento estranho, era comum Roger esperá-la com o pagamento em mãos a cada início de mês, conforme combinado. “Deve ter passado a noite fora, esses universitários... ao menos esse não seria médico” pensou aliviada. Aquele clima frio não era nada benéfico para seus pulmões, de forma que não tencionava prolongar sua exposição ao tempo frio e deu a volta pela lateral da casa. Olhou pelo vitrô da cozinha, nada pode ver, a neblina embaçara todo o vidro, o interior era nada mais que um borrão. Voltou à entrada e resolveu experimentar a maçaneta, estava trancada, retirou da bolsa sua cópia da chave e colocou-a na fechadura “se estiver dormindo terei o prazer em acordá-lo, nunca mais deixará uma senhora plantada em sua porta, isso lá são modos!”. Ouviu o estalar do fecho, girou a maçaneta, a porta pesou sobre seu braço já enfraquecido pelos anos, abrindo-se para fora, como se algo a forçasse por dentro. Sentiu alguma coisa tocar suas pernas, baixou o olhar e a princípio não percebeu o que acontecia, sua mente estava confusa, não entendia...
Em um instante seu coração parou, no seguinte voltou a bater com toda a força, como pulsara nos distantes anos da sua juventude e todas as suas cordas vocais vibraram com assustadora vitalidade de forma a emitir um grito medonho e pavoroso, pois ali, aos seus pés, estavam, em um monturo, como os despojos de uma guerra, os restos do que um dia fora o seu inquilino.

Marco Roberto de Oliveira