Tema do blog



Embora minha principal intenção seja publicar material relativo à literatura e ao cinema fantásticos, o blog poderá apresentar também materiais de cunho diversos, alguns dos quais acho interessantes de uma forma geral, portanto não estranhem se encontrarem algo fora do tema principal.
Se ao menos uma pequena parte que seja do conteúdo do blog contribuir, de alguma forma, para a divulgação das múltiplas e ricas facetas da literatura fantástica, de horror ou sobrenatural, o blog terá cumprido seu principal propósito.


segunda-feira, 23 de março de 2015

M. R. James - O livro de recortes do Cônego Alberic

O primeiro conto de M. R. James a ser publicado, saiu em um periódico no ano de 1895, e posteriormente, em 1904, em sua primeira antologia (Histórias de fantasmas de um antiquário), é também o seu conto mais "antologizado", inclusive no Brasil. Um inglês, Dennistoun em viagem à França, visitando uma das catedrais daquele país com a intenção de realizar uma pesquisa histórica, entra em contato com uma obra antiga e rara, um livro de recortes. Dennistoun demonstra profundo interesse em adquirir a obra, e coincidentemente um Sacristão, que é o possuidor da mesma, aceita, de forma no mínimo suspeita, prontamente se desfazer do livro. Logo o negócio foi concretizado e o recibo assinado (como dito no próprio conto), e de posse do livro de recortes, Dennistoun descobre o teor de seu segredo, de uma forma aterrorizante; forma esta que os Srs. descobrirão por si mesmos se acompanharem o texto que vem logo abaixo.  

M. R. James - O livro de recortes do Cônego Alberic

Saint Bertrand de Comminges é uma cidade decadente nos contrafortes dos Pireneus, não muito longe de Toulouse e mais próxima ainda de Bagnères-de-Luchon. Fora a sede de um bispado até a Revolução e possuía uma catedral que era visitada por uma certa quantidade de turistas. Na primavera de 1883, um inglês chegou a esse lugar do mundo antigo — chamá-lo de cidade talvez fosse atribuir-lhe uma excessiva dignidade, pois seus habitantes não chegam a mil. Ele era um homem de Cambridge, que viera especialmente de Toulouse para ver a igreja de São Beltrão  e deixara dois amigos, arqueólogos menos apaixonados do que ele, em seu hotel em Toulouse, com a promessa de reunirem-se a ele na manhã seguinte. Meia hora na igreja lhes seria suficiente, e todos os três poderiam depois prosseguir sua jornada em direção a Auch. Mas nosso inglês viera cedo no dia em questão e propusera-se a encher um caderno e usar dezenas de ilustrações para descrever e fotografar cada canto da maravilhosa igreja que domina a colina de Comminges. A fim de levar a termo seu desígnio de modo satisfatório, era necessário monopolizar o sacristão da igreja durante o dia todo. O maceiro ou sacristão (prefiro esta última denominação, por mais inexata que seja) foi, portanto, chamado pela senhora um tanto rude que administra a pousada do Chapeau Rouge; e quando veio, o inglês viu nele um objeto de estudo inesperadamente interessante. Não era na aparência pessoal  do pequeno, seco e mirrado velho que residia o interesse, pois ele era exatamente igual a dúzias de outros guardiões de igreja da França, mas num ar curiosamente furtivo, ou antes de alguém enxotado e oprimido, que ele demonstrava. Lançava incessantes olhares de soslaio atrás de si; os músculos de suas costas e de seus ombros pareciam  arquear-se numa contração nervosa contínua, como se à espera de, a qualquer momento, ver-se nas garras de um inimigo. O inglês não conseguia decidir-se quanto a considerá-lo um homem acossado por uma idéia fixa, ou alguém oprimido por uma consciência culpada, ou ainda, um marido intoleravelmente repreendido. A avaliação das probabilidades certamente apontava para essa última; mas mesmo assim a impressão era mais a de um  opressor terrível do que a de uma esposa rabugenta. 
    Contudo, o inglês (chamemo-lo   Dennistoun) logo estava demasiado absorto  com seu   caderno   e demasiado ocupado com sua  câmera para dar mais do que uma ocasional olhada de relance para o sacristão. Toda vez que o olhava, encontrava-o perto, quer apertando-se contra a parede ou agachando-se em um dos imponentes baias do coro. Dennistoun ficou um tanto impaciente após um tempo. Suspeitas várias de que estava impedindo o velho de fazer seu desjejum, de que poderia evadir-se com a croça de marfim de St. Bertrand ou com o crocodilo empalhado e empoeirado que pendia sobre a fonte começaram a incomodá-lo. 
    “Você não quer ir para casa?”, disse ele por fim. “Posso  muito bem terminar minhas anotações sozinho; você pode trancar-me aqui dentro, se quiser. Vou precisar de pelo menos duas horas mais aqui e acho que está frio para você, não?”
    “Cruzes!”, disse o homenzinho, a quem a sugestão pareceu lançar num estado de inexprimível terror, “nem por um momento pode-se pensar nisso. Deixar o  monsieur sozinho na igreja? Não, não; duas horas, três horas, não fazem   diferença  para   mim.   Já   fiz   meu   desjejum,   não   estou   absolutamente com frio, muito obrigado, monsieur.”
    “Muito bem, meu homenzinho”, disse Dennistoun para si, “você já foi avisado e deve aceitar as conseqüências.”
    Antes que se expirassem as duas horas, o enorme órgão em ruínas, o anteparo do coro do bispo João de Mauléon, os vestígios de vidro e de tapeçaria e os objetos  da câmara do tesouro haviam todos sido examinados com cuidado e detalhadamente;  com   o   sacristão   ainda   aos   calcanhares   de Denninstoun e vez por outra a virar-se repentinamente cada vez que ouvia um dos estranhos ruídos que perturbam um amplo e vazio edifício como se sentisse uma estocada. Ruídos estranhos havia, por vezes.
    “Eu poderia jurar”, disse-me Dennistoun, “ter ouvido uma vez o som de um riso alto metálico na torre”. Lancei um olhar interrogativo para meu sacristão. Seus lábios estavam brancos. “É ele — isto é —, não é ninguém; a porta está trancada”, foi tudo que ele disse, e olhamos um para o outro durante um minuto inteiro.
    Um outro pequeno incidente intrigou bastante Dennistoun. Ele estava examinando um grande quadro escuro pendurado atrás do altar, um de uma série que ilustra os milagres de São Beltrão. A composição do quadro é quase indecifrável, mas há uma legenda em latim abaixo, que diz o seguinte:
    “Qualiter  S. Bertrandus liberavit hominem quem diabolus diu volebat strangulare” (Como São Beltrão libertou um homem a quem o Diabo há muito tentava estrangular).
     Dennistoun voltou-se para o sacristão com um sorriso e uma observação jocosa qualquer em seus lábios, mas ficou surpreso ao ver o velho de joelhos, olhando  fixamente para o quadro com os olhos de um suplicante aflito, as mãos postas muito apertadas e um dilúvio de lágrimas nas faces.
    Dennistoun instintivamente fingiu que nada notara, mas não conseguia deixar de fazer-se  a  pergunta:  “Por   que  uma   pintura   grosseira   assim   afetaria tanto alguém?” Ele pareceu chegar a algum tipo de pista quanto ao motivo do estranho olhar que o intrigara o dia todo: o homem deve ser um monomaníaco; mas qual seria sua monomania?
    Eram quase cinco horas; o curto dia estava findando, e a igreja começou a encher-se de sombras, enquanto os ruídos estranhos — os sons abafados de passos e as vozes falando à distância que haviam sido perceptíveis durante todo o dia — pareciam, sem dúvida em virtude da diminuição da luz e o   conseqüente  aguçamento  da   audição,   tornar-se   mais   freqüentes  e insistentes.
    O sacristão começou pela primeira vez a mostrar sinais de pressa e impaciência.  Deu   um   suspiro de alívio quando a câmera e o caderno foram finalmente acondicionados e guardados e  apressadamente acenou para Dennistoun em direção à porta da igreja, sob a torre. Era a hora de soar o Ângelus. Uns   poucos   puxões  na corda   relutante,  e o grande  sino bertrandense, no alto da torre, começou a falar e elevou sua voz cantante acima dos pinheiros, e por sobre os vales, alta como os riachos da montanha, chamando os habitantes daquelas colinas solitárias a recordar e repetir a saudação do anjo àquela a quem ele chamou de Abençoada dentre as mulheres. Com isso, um silêncio profundo pareceu cair pela primeira vez no dia sobre a pequena cidade, e Dennistoun e o sacristão saíram da igreja. Na soleira, iniciaram   uma   conversa.  “Monsieur  pareceu   interessar-se   pelos   velhos   livros   do coro na sacristia.”
    “Sem dúvida. Eu estava para lhe perguntar se há uma biblioteca na cidade.”
   “Não, monsieur, talvez houvesse uma pertencente ao Cabido, mas é  agora   um  lugar  tão  pequeno...”  Aqui   ocorreu   o   que   pareceu   uma   estranha pausa de hesitação; então, com uma espécie de salto no escuro, ele continuou: “Mas se monsieur é amateur des viex livres, eu tenho em casa algo que poderia interessar-lhe. Não chega a cem jardas.”
   Imediatamente todos os acalentados sonhos de Dennistoun de encontrar  inestimáveis   manuscritos   nos   cantos  inexplorados   da   França   iluminaram-se, para morrer novamente no momento seguinte. Era provavelmente um simplório missal da impressão de Plantin, de cerca de 1580. Qual probabilidade havia de que um lugar tão próximo a Toulouse não houvesse sido vasculhado há muito tempo por  colecionadores? Todavia, seria tolice não ir; ele provavelmente depois se censuraria para sempre por ter recusado o convite. E assim partiram. A caminho, a estranha hesitação e súbita determinação do sacristão ocorreu novamente a Dennistoun, e ele se perguntou,   envergonhado, se estaria sendo atraído por um engodo até alguns arredores para ser morto como um inglês supostamente rico. Começou, portanto, a conversar com seu guia e trouxe à baila, de uma maneira bastante desajeitada, o fato de que aguardava dois amigos para a manhã seguinte bem cedo. Para sua surpresa, a notícia pareceu aliviar o sacristão imediatamente de alguma aflição que o oprimia.
    “Ótimo”, disse ele vivamente —  “muito, muito bom. Monsieur viajará na  companhia   de   seus   amigos;   eles   sempre   estarão   juntos   de   si.  É  muito bom viajar assim, em companhia — algumas vezes.”
    A última palavra pareceu ser acrescentada como uma reflexão tardia, e trazer consigo uma recaída na melancolia do pobre homenzinho.
    Logo   chegaram   a   casa,   que   era   um   pouco   maior   do  que   as vizinhas, feita de pedra, com um brasão gravado sobre a porta, o brasão de Alberic de Mauléon, um descendente colateral, segundo me informou Dennistoun, do bispo   João   de  Mauléon.   Esse   Alberic   fora   um   cônego   de   Comminges   de 1680 a 1710. As janelas superiores da mansão estavam fechadas com tábuas, e o lugar todo portava, como tudo o mais em Comminges, o aspecto de velhice decadente. Chegando à soleira, o sacristão deteve-se por um instante.
    “Talvez,” disse ele, “talvez, afinal, monsieur não tenha tempo?”
    “Absolutamente — muito tempo — nada a fazer até amanhã. Vejamos o que você tem aí.”
     A   porta   abriu   neste   instante,   e   um   rosto   apareceu,   um   rosto   muito mais jovem do que o do sacristão, mas a mostrar a mesma fisionomia angustiada; mas aqui parecia ser a marca, não tanto do receio pela segurança pessoal quanto de grande preocupação por outrem. A possuidora do rosto era claramente filha do  sacristão; e,  salvo pela expressão que descrevi, era uma   moça   bastante   bonita. Sua  fisionomia iluminou-se consideravelmente ao ver seu pai acompanhado de um estranho saudável. Pai e filha trocaram algumas observações, das quais Denninstoun captou apenas estas palavras, ditas  pelo  sacristão:  “Ele   estava   rindo   na   igreja”,  palavras   que   foram   respondidas apenas por um olhar de terror da moça.
    Mas logo eles estavam na sala de estar da casa, um aposento pequeno e de pé-direito alto, com piso de pedra, cheio de sombras moventes, lançadas pelas toras ardentes que tremulavam numa grande lareira. Um crucifixo alto, que quase alcançava o teto, num dos lados, dava-lhe um certo toque de oratório; a imagem estava pintada em cores naturais, a cruz era negra. Sob esta, havia uma cômoda um tanto antiga e maciça, e quando se trouxe um candeeiro e se colocaram as cadeiras, o sacristão foi até essa cômoda e dela tirou, com crescente excitação e nervosismo, segundo pareceu a Dennistoun, um livro   grande,   embrulhado   num  pano   branco,  no qual com linha   vermelha estava   bordada   toscamente  uma  cruz. Mesmo   antes   de   removido  o pano, Dennistoun começou a interessar-se pelo tamanho e pela forma do volume. “Muito grande para um missal”, pensou ele, “e não tem a forma de um antifonário; talvez seja algo bom, afinal.” No momento seguinte, o livro estava aberto, e Dennistoun sentiu que conseguira por fim dar com algo excepcional. Diante dele estava um grande fólio, encadernado, talvez, em fins do século   dezessete,  com  as  armas  do  cônego   Alberic   de   Mauléon estampados em ouro nos lados. Havia provavelmente umas cento e cinqüenta folhas de papel no livro, e em quase todas estava presa uma folha de um manuscrito ornamentado. Dennistoun jamais sequer sonhara, mesmo em seus sonhos mais delirantes, em deparar-se com uma tal coleção. Ali estavam dez folhas de uma cópia do Gênese, ilustradas com imagens, que não podiam ser posteriores a 700 d.C. Além disso, havia um conjunto completo de imagens de um Saltério, de origem inglesa, da espécie mais refinada que o século treze poderia produzir; e,  talvez o melhor de tudo, havia vinte folhas de escrita uncial   em   latim,   as   quais,  como   umas   poucas   palavras   vistas   aqui  e lá lhe disseram imediatamente, deviam pertencer a algum tratado patrístico desconhecido muito antigo. Seriam um fragmento da cópia do Sobre as palavras do Senhor, de Papias, a qual, sabe-se, teria existido até o século doze em Nîmes (1)?
De   qualquer   modo,  ele   já se   decidira: aquele   livro   devia   voltar   para   Cambridge com ele, ainda que precisasse sacar o total de seu dinheiro do banco e ficar em Saint Bertrand até que o dinheiro chegasse. Ele olhou para o sacristão para ver se seu rosto mostrava algum sinal de que o livro estava à venda. O sacristão estava pálido e seus lábios contraídos.
    “Se monsieur olhar o fim”, disse ele. Assim, monsieur folheou as páginas, nas quais encontrou sucessivos tesouros, e no fim do livro encontrou duas folhas de papel, de data muito mais recente do que as vistas até aquele momento, o que muito o intrigou. Elas devem ser contemporâneas, concluiu,
ao inescrupuloso cônego Alberic, que sem dúvida saqueara a biblioteca do Cabido de Saint Bertrand para compor seu inestimável livro de recortes. Na primeira das folhas de papel estava um plano, cuidadosamente desenhado e imediatamente identificável por  alguém que conhecesse o terreno, da nave sul e dos claustros de Saint Bertrand.
    Havia sinais estranhos que se assemelhavam a símbolos planetários e umas   poucas  palavras   em   hebraico,   nos   cantos;   e   no   ângulo   noroeste   do claustro   estava   uma  cruz   desenhada   com   tinta   dourada. Abaixo da planta havia algumas linhas de escrita em latim, que diziam o seguinte:
    “Responsa 12mi Dec. 1694. Interrogatum est: Inveniamne? Responsum est: Invenies. Fiamne   dives?   Fies.   Vivamne   invidendus?   Vives.   Moriarne   in   lecto   meo?  Ita” (Respostas   de   12   de   dezembro,   1694.   Foi   perguntado:   Eu   o   encontrarei? Resposta: Vós o encontrareis. Ficarei rico? Ficareis. Serei objeto de inveja? Sereis. Morrerei em minha cama? Morrereis.).
    “Um bom espécime do registro do caçador de tesouro — lembra-me muito um do sr. Cônego Menor Quatremain na antiga igreja de Saint Paul”, foi o comentário de Dennistoun, e virou a página.
    O que ele então viu impressionou-o, como ele me disse repetidas vezes, mais do que imaginaria ser capaz qualquer desenho ou figura. E, embora o desenho   que   viu   não   mais   exista,   há   uma   fotografia   dele (que eu possuo) que sustenta essa afirmação. A imagem em questão era um desenho em sépia do fim do século dezessete, representando, dir-se-ia a uma primeira vista, uma cena bíblica; pois a arquitetura (o desenho representava um interior) e as figuras possuíam aquele ar semiclássico que os artistas de duzentos anos atrás julgavam apropriado às ilustrações da Bíblia. À direita estava um rei em seu trono acima de uma escada de doze degraus, coberto por um baldaquino, leões em ambos os lados — evidentemente o rei Salomão. Ele estava inclinado para frente, com o cetro estendido, numa atitude de comando; seu rosto exprimia horror e repugnância; contudo, havia também nele a marca de vontade imperiosa e confiança em seu poder. A parte à esquerda do quadro era todavia a mais estranha. O interesse claramente centrava-se ali. No plano diante do trono estavam   agrupados   quatro   soldados,   cercando   uma figura  agachada que será logo descrita. Um quinto soldado jazia morto no chão, seu pescoço retorcido e os globos oculares saltando de sua cabeça. Os quatro guardas em volta estavam olhando para o rei. Em suas faces, o sentimento de horror era mais intenso; eles pareciam, na verdade, apenas paralisados pela  confiança implícita em seu senhor. Todo esse terror era claramente provocado pelo ser agachado entre eles. Não tenho palavras  para descrever a impressão que essa figura produz em qualquer pessoa que olhe para ela. Recordo-me de  ter mostrado uma vez a fotografia do desenho a um estudioso de morfologia — uma pessoa, ia eu dizendo, de espírito excepcionalmente são e avesso a fantasias. Ele peremptoriamente recusou-se a ficar sozinho pelo resto daquela noite e contou-me depois que, durante muitas noites, não ousara apagar a luz antes de ir dormir. No entanto, os traços principais da figura posso ao menos   indicar. A princípio, via-se somente uma massa de cabelos negros grossos e emaranhados, mas depois notava-se que eles cobriam um corpo de incrível magreza, quase um esqueleto, mas com os músculos a sobressaírem como arames. As mãos eram de uma palidez arenosa, cobertas, como o corpo, de pêlos longos e grossos e horrendamente providas de garras. Os olhos, matizados de um amarelo flamejante, tinham pupilas de um negro intenso e estavam fixas no rei ao trono, com um olhar de ódio feroz. Imagine-se uma das horrendas aranhas caranguejeiras da América do Sul, traduzida para a forma humana e dotada de inteligência um pouco abaixo da humana, e ter-se-á uma fraca idéia do terror inspirado por  essa  efígie  aterrorizadora. Uma observação comum é feita  por aqueles a quem mostrei a imagem: “Foi desenhada do natural”.
    Assim que o primeiro choque desse susto diminuiu, Dennistoun lançou um olhar furtivo para seus anfitriões. As mãos do sacristão estavam apertadas contra seus olhos; sua filha, os olhos alçados para a cruz na parede, estava febrilmente rezando seu terço.
       Por fim, perguntei: “Este livro está à venda?”
    Houve a mesma hesitação, o mesmo salto de determinação que ele tivera anteriormente e então veio a resposta bem-vinda. “Se o monsieur o quiser.”
    “Quanto você pede por ele?”
    “Aceitarei duzentos e cinqüenta francos.”
    Era embaraçoso. Até mesmo a consciência de um colecionador é por vezes afetada, e a consciência de Dennistoun era mais forte do que a de um colecionador.
    “Meu  bom   homem!”,  disse  ele  repetidamente, “seu   livro  vale  muito mais do que dois mil e quinhentos francos asseguro-lhe. Muito mais.”
     Mas a resposta não mudou:  “Aceitarei duzentos e cinqüenta francos, não mais”.
    Não havia realmente nenhuma possibilidade de recusar uma oportunidade como aquela. O dinheiro foi pago, o recibo assinado, um copo de vinho bebido em honra à transação e então o sacristão pareceu transformar-se em outro homem. Endireitou o corpo, cessou de lançar aqueles olhares de suspeita  atrás de si,  na verdade riu ou tentou  rir.  Dennistoun  levantou-se para partir.
    “Terei a honra de acompanhar monsieur ao seu hotel?”, disse o sacristão.
    “Ah!, não, obrigado! São menos de cem jardas. Conheço muito bem o caminho e há luar.”
     A oferta foi repetida três ou quatro vezes e todas elas recusadas.
    “Então, monsieur me chamará se —  se precisar; caminhe pelo meio da estrada, pois as margens são muito irregulares.”
    “Certamente,   certamente”, disse Dennistoun, que estava impaciente para examinar seu troféu sozinho; e ele atravessou o corredor com o livro sob o braço.
    Lá a filha do sacristão o esperava; ela, parecia, estava ansiosa para concretizar uma transação de sua própria iniciativa; talvez, como Gehazi, “levar mais algum” do estranho a quem seu pai poupara.
    “Um crucifixo de prata e uma corrente para o pescoço; monsieur faria a gentileza de aceitá-los?”
    Bem, na verdade, essas coisas não teriam muita serventia para Dennistoun. “Quanto mademoiselle queria por elas?”
     “Nada, nada mesmo. Monsieur nada me deve por elas.”
     O tom com que isso e muito mais foi dito era claramente sincero, e assim Dennistoun foi obrigado a exprimir seus agradecimentos e a pôr a corrente em volta de seu pescoço. Parecia que ele realmente prestara ao pai e à filha   algum  favor que eles mal sabiam como recompensar. Enquanto ele partia com seu livro eles ficaram à porta, cuidando dele e ainda estavam olhando quando ele acenou-lhes em despedida, nos degraus do Chapeau Rouge.
    O jantar havia terminado, e Dennistoun estava em seu quarto, fechado sozinho com sua aquisição. A senhoria manifestara um especial interesse nele desde que ele lhe dissera ter visitado o sacristão e comprado dele um livro antigo. Ele julgou também ter ouvido um diálogo apressado entre ela e o dito sacristão no corredor fora da salle à manger, algumas palavras, seguidas por “Pierre e Bertrand dormiriam na casa”, que encerrara a conversa.
    Todo esse tempo, uma sensação crescente de desconforto estivera tomando conta dele — reação nervosa, talvez, após o prazer de sua descoberta. Fosse  como fosse, resultou numa convicção de que havia alguém atrás dele e de que ele estava muito mais confortável com suas costas voltadas para a parede. Tudo isso, é claro, pesava pouco na balança, em vista do valor da coleção que ele adquirira. E agora, como eu disse, ele estava a sós em seu   quarto, avaliando os  tesouros do cônego Alberic, nos quais cada momento revelava algo mais encantador.
    “Bendito cônego Alberic!”, disse Dennistoun, que tinha um hábito inveterado de falar consigo mesmo.  “Onde estará ele agora? Meu Deus! Eu gostaria que a senhoria aprendesse a rir de um modo mais agradável; ela faz sentir como se houvesse alguém morto na casa. Meia cachimbada mais, você diz? Acho que talvez você tenha razão. Que crucifixo é aquele que a jovem insistiu em me dar? Do século passado, imagino. Sim, provavelmente.
    É uma maçada tê-lo em volta do pescoço — pesado demais. É provável que seu pai o usou durante anos. Acho que poderia limpá-lo um pouco antes de tirá-lo.”
   Ele tirara o crucifixo e o pusera sobre a mesa, quando sua atenção foi atraída por um objeto que estava sobre o pano vermelho, perto de seu cotovelo esquerdo. Duas ou três idéias sobre o que ele poderia ser perpassaram sua cabeça com uma rapidez incalculável e singular.
    “Um mata-borrão? Não, não nesta casa. Um rato? Não, preto demais. Uma  aranha   grande? Deus   queira que não  —  não.  Deus meu! Uma mão como a daquele desenho!”
    Num outro átimo, ele o entendeu. Pele pálida, arenosa, a cobrir nada senão ossos e tendões de uma força espantosa; pêlos negros e ásperos, mais longos do que os que jamais cobriram uma mão humana; unhas que avançavam das pontas dos dedos e curvavam-se em ângulo agudo para baixo e para frente, cinzentas, córneas e rugosas.
    Ele pulou da cadeira com um terror mortal, inconcebível, a apertar seu coração. A forma, cuja mão esquerda jazia sobre a mesa, estava elevando-se a  uma postura ereta atrás de seu assento,os cabelos ásperos cobriam-na, como no desenho. A mandíbula era fina — como diria eu? — rasa, como a de uma fera; os dentes mostravam-se atrás dos lábios negros; não havia nariz; os olhos, de um amarelo flamejante, contra os quais as pupilas eram negras e intensas, e o ódio exultante e a sede para destruir a vida que lá brilhava, eram os traços  mais aterradores de toda a visão. Havia uma espécie de inteligência neles — inteligência para além da que possui uma fera e abaixo da que possui um homem.
    Os   sentimentos   que   esse   horror   incitou   em   Dennistoun   eram   os   do mais intenso medo físico e da mais profunda repugnância mental. O que ele fez? O que podia fazer? Ele nunca soube muito bem que palavras proferiu, mas sabe que falou, que agarrou cegamente o crucifixo de prata, que estava consciente de um movimento em sua direção da parte do demônio, e de que gritou com a voz de um animal em agonia medonha.
    Pierre e Bertrand, os dois pequenos criados vigorosos, que acorreram, nada viram, mas sentiram-se empurrados por algo que passava entre ambos, e encontraram  Dennistoun   desfalecido. Velaram-no naquela   noite, e seus dois amigos chegaram a São Beltrão por volta das nove horas na manhã seguinte. Ele próprio, embora ainda trêmulo e nervoso, já estava quase restabelecido àquela hora, e sua   história  mereceu   o   crédito   deles,   embora   não antes que vissem o desenho e falassem com o sacristão.
    Quase ao amanhecer, o homenzinho viera à hospedaria sob um pretexto e ouvira com o mais profundo interesse a história contada com detalhes pela senhoria. Ele não mostrou surpresa.
    “É ele... é ele! Eu também já o vi”, foi seu único comentário; e a todas as perguntas respondeu apenas: “Deux fois je l’ai vu; mille fois je l’ai senti ”. Ele não quis lhes contar qual a origem do livro, nem quaisquer detalhes de suas experiências. “Logo dormirei, e meu repouso será agradável. Por que vocês me perturbariam?”, disse ele. (2)
     Nunca saberemos o que ele ou o cônego Alberic de Mauléon passaram. No verso daquele desenho sinistro haviam  algumas linhas manuscritas que podem lançar alguma luz sobre o caso:

                      “Contradictio Salomonis cum demonio nocturno.
                              Albericus de Mauleone delineavit.
                          V. Deus in adiutorium. PS. Qui habitat.
            Sancte Bertrande, demoniorum effugator, intercede pro me miserrimo.
                              Primo uidi nocte 12mi  Dec. 1694:

                           uidebo mox ultimum. Peccaui et passus
                       sum,plura adhuc passurus. Dec. 29, 1 701”. (3)                            
 
    
    O  "Gallia   Christiana"  dá   como data do   falecimento do   Cônego a   data de   31 de dezembro de 1701, "na cama, de um ataque súbito". Detalhes dessa espécie não são comuns na grande obra de Sammarthani (N.A.). 
 
    Nunca compreendi inteiramente como Dennistoun vivenciou os fatos que narrei. Uma vez citou um trecho de Eclesiastes: “Alguns espíritos foram criados para a vingança, e, em sua fúria provocam as chagas e os golpes”. Em outra ocasião  falou: Isaias foi um homem muito sensível; nunca disse nada sobre espíritos noturnos nas ruínas da Babilônia. Estas coisas estão fora de nosso entendimento”.
    Fiquei impressionado também com outra de suas confidencias e senti pena dele. No ano passado estivemos em Comminges e fizemos uma visita ao túmulo do Cônego Alberic. É grande, feito de mármore, com a efígie do Cônego com uma grande peruca e manto clerical, e um elaborado elogio à sua sabedoria. Vi Dennistoun conversando com o vigário de São Beltrão e ao partirmos disse-me: “Espero não estar enganado, pois, como sabes, sou presbiteriano, mas penso que eles rezam missa e cantam lamentações pelo descanso da alma de Alberic de Mauléon”, acrescentando, no tom do norte da Inglaterra, “mas parece que não o apreciam de verdade”.
    O livro acha-se na Coleção Wentworth, da Universidade de Cambridge. A gravura foi queimada por Dennistoun no dia em que partiu de Comminges por ocasião da sua primeira visita.
 


(1) Sabemos agora que essas folhas citadas contêm um fragmento considerável dessa obra, mas não possuímos cópia (N.A.). 
(2) Ele morreu naquele verão; sua filha casou-se e estabeleceu-se em São Papoul. Ela jamais entendeu as circunstâncias da “obsessão” do seu pai (N.A.)
(3) “A Luta de Salomão com um demônio da noite. Desenhada por Alberic de Mauléon. Versículo. Oh, Senhor, apresse-se em meu auxílio. Salmo. „Quem quer que habite‟ [xci]. São Beltrão, que combateu aos demônios voadores, reza por mim, o maior dos infelizes. Eu o vi pela primeira vez na noite de  12 de dezembro de 1694; logo o verei de novo pela última vez. Pequei, sofri e ainda tenho de sofrer mais. 29 de dezembro de 1701.”      

2 comentários:

  1. Ótimas postagem. Precisamos de mais M. R. James por aí

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    1. Sim, uma pena que é muito pouco traduzido aqui no Brasil.
      Pouquíssimos contos de James em português, esse "O livro de recortes do Cônego Alberic" é o mais traduzido. Há também "Um episódio na história da catedral", recentemente publicado na coletânea "Contos clássicos de vampiros" da editora Hedra.
      Mas é só, aqueles que querem ter a oportunidade de ler tem que apelar para os originais em inglês.
      Abraços

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